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Dia Aberto no Lar dos Rapazes da SCMS

O sistema de protecção de crianças em perigo, em especial o acolhimento de crianças em instituição, está na ordem do dia. A imprensa tem divulgado um conjunto de histórias inquietantes e alarmantes sobre as nossas crianças que vão desde o abuso e maltrato institucional ao abuso e maltrato familiar. Esta dupla polarização família de risco e instituição perigosa tem despertado na sociedade um sentimento de incredibilidade e de paralisia. Sentimento que, na minha opinião, não tem sido facilitador na construção de um quadro de referência que permita pensar e entender o fenómeno violento que vimos observando.

Neste sentido a Santa Casa da Misericórdia de Santarém (SCMS) endereçou um convite para reflexão a um conjunto de instituições congéneres com o título “Dia Aberto”.

O título da iniciativa pretendia ser uma preconcepção não saturada de forma a desempenhar a função de quadro em branco à espera de ser preenchido por ideias, crenças, sonhos e pensamentos de técnicos à espera de serem pensados em grupo.

E assim foi. Numa primeira a fase o grupo centrou-se sobre a interrogação “Que crianças são estas que acolhemos todos os dias?”. A caracterização dividiu-se inicialmente em dois eixos:
i) o que lhes tinha acontecido para sem acolhidas;
ii) e quais as características comportamentais e psicopatológicas que apresentam.

Referente ao primeiro eixo, existiu uma unanimidade em torno das situações contextuais que levam nos dias de hoje as crianças a serem retiradas do seu meio natural: maltrato físico e emocional, abuso sexual, negligência física, negligência emocional, exposição a contextos de violência familiar e de extrema desorganização.

A análise do segundo eixo levou, por um lado, à descrição de quadros psicopatológicos recorrentes nesta população, como seja a perturbação de hiperactividade com défice de atenção, a perturbação de comportamento de oposição e a estruturação de personalidades estado-limite, e por outro lado a indicar alguns elementos de personalidade que parecem frequentemente alterados como seja a tolerância à frustração, a capacidade de fazer lutos, e a capacidade de verbalizar as emoções.

Em síntese, concluiu-se com alguma facilidade que nos são confiadas crianças pouco integradas, que nos mostram todos os dias através dos seus comportamentos e atitudes uma identidade pouco coesa, com dificuldade em estabelecer vínculos e relações reparadoras das experiências de privação precoce.

Numa segunda fase o grupo migrou a sua discussão para a questão “Qual o papel das nossas instituições: orfanatos vs colégios?”.

No modelo actual de protecção de crianças é politicamente correcto afirmar que a instituição é a última resposta de protecção e que as instituições são um mal menor. Assim, o modelo antigo das famílias se dirigirem directamente às instituições de acolhimento com a finalidade dos seus filhos serem acolhidos findou sobre a égide do argumento que é necessário responsabilizar a família pela educação dos seus filhos. Neste sentido, diversos técnicos fizeram saber da sua revolta e falta de compreensão pelas famílias que encaram a instituição como um colégio onde os filhos estão durante a semana para receberem educação. Famílias que parecem desta forma esconder a sua disfuncionalidade atrás da ideia romântica de terem os filhos a estudar num bom colégio. A quebra deste romantismo levou-nos a recuar dois séculos para o imaginário inglês de Charles Dickens e para os orfanatos em torno de Manchester. Casas de abandono despidas de qualquer humanidade. Criandários ou hospícios para enjeitados era o nome pelo qual estas instituições eram conhecidas em Portugal. A polarização entre a ideia de colégio desresponsabilizante para os pais e a ideia de hospício de enjeitados altamente estigmatizante para a família, fez o grupo reflectir sobre qual deve ser o espaço a ocupar pelas instituições de acolhimento do século XXI.

Um dos elementos do grupo face à dificuldade de posicionar as instituições no contínuo acima descrito, defendeu que as instituições são simplesmente uma CASA.

O grupo passou então a reflectir sobre que casa é que todos queremos. Foi-se concluindo que a casa teria de ter no mínimo quatro paredes, e que estas deveriam ser seguras e revestidas de afecto, de amor. A casa deveria ter igualmente um telhado vermelho e sólido, vermelho porque todos os telhados são vermelhos no imaginário das crianças. No telhado deve existir uma chaminé onde todos os dias sai fumo branco ao fim da tarde. O fumo branco é o resultado da esperança que é cozinhada na habitação. Na parte da frente da casa devem ser colocadas duas ou mais janelas, as suficientes para que todas as crianças tenham sempre um lugar à janela. É importante olhar o mundo a partir de casa. Ainda na parte da frente da edificação deve ser colocada uma porta com uma campainha. A campainha sempre que toca lembra toda as pessoas de casa que existe um dentro e um fora, e que existem pessoas que chegam e que partem. Ao longe, ao olharmos da casa, deve ser visível uma estrada, que pode ser longa e afunilada, mas sempre tratada, que une a nossa casa a uma outra lá no passado. Este caminho, por vezes, só é visto ao longe ou de avião, mas deve ser lembrado e cuidado diariamente. Senão for tratado, o caminho pode estar disfarçado pelas urzes que tendem a crescer em redor. Ninguém no grupo foi capaz de explicar porque é que os terrenos à volta destes caminhos são sempre férteis para as urzes; contudo houve unanimidade em torno da ideia de limpeza e cuidado diário do caminho.

O grupo acabou por concluir que na vida das crianças acolhidas existem sempre pelo menos três casas: a casa da família biológica, a casa de acolhimento e a casa sonhada. A casa sonhada é sem dúvida a mais importante e a que precisa de ser mais conservada senão na cabeça das crianças, pelo menos na cabeça dos adultos que olham por elas.

PVS