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Carta aberta de Bruno Ferreira

"Caro Pedro Vaz Santos,

Por vezes divirto-me a visitar o teu blog e é com orgulho que reconheço o teu empenho para mobilizar uma reflexão em torno a uma realidade tão profunda e complexa.

Penso que a problemática do acolhimento, negligência e mau trato infantil envolva varias dimensões de cuja articulação "pensada" dependerá o sucesso, ou menos, das intervenções em causa, e mais importante ainda, a vida e a saúde dos seres humanos que delas beneficiam e daqueles que nelas se empenham.

Reconheço que a complexidade decorrente dessa articulação seja um osso duro de roer, para mais num país como ao nosso, onde as deficiências estruturais, a falta de investimentos, mas também a carência a nível de formação e, em certos aspectos, a cultura dominante são aquelas que sabemos, em nada conforme as modelos de referência implementados noutras regiões do globo.
Daí o mérito da tua empreitada.

Contudo desde há algum tempo que vai crescendo em mim uma preocupação concreta que provavelmente deriva desta nossa formação de pensar os conteúdos manifestos como expressão de uma indeterminada comunicação latente ou inconsciente se quisermos.

Como ambos sabemos, eu tenho uma predilecção para pensar os fenómenos através de uma perspectiva psicanalítica e dinâmica não linear, e interesso-me particularmente por todos aqueles aspectos da complexidade dos sistemas inter-relacionais, em particular naquilo que concerne a evolução (Psicologia do desenvolvimento, vida dos grupos e das organizações, evolução do pensamento, etc.).

Por outro lado sou muito sensível aos aspectos teóricos e princípios epistémicos que fundamentam determinadas opções práticas e técnicas, que influenciam o nosso agir quer a nível científico, psicoterapêutico, e ainda a construção de modelos de intervenção nas diversas áreas da saúde e do panorama social.

Estou certo que a teoria estabelece uma relação dialéctica com os factos científicos, o que determina em absoluto a escolha de um método, mas sou da opinião que a técnica de pouco nos serve para pensar a teoria. Quer isto dizer que existem muitos "graus de liberdade" na escolha de uma técnica e muito poucos na construção de uma teoria que se aproxima de uma relativa verdade explicativa e conjectural e que elucida o método.

(Temo que os modelos científicos não sejam outra coisa senão conjecturas mais ou menos imperfeitas da realidade. Não obstante, é com base nestas conjecturas científicas que se torna possível pensar os fenómenos.)
Creio que a relação entre método e teoria seja fundamental para o nosso agir profissional. Permite-me que estabeleça uma metáfora para que seja mais clara a minha posição. Como diz o provérbio, as vias do Senhor são muitas. A teoria é o fundamento de um destino e a explicação do método. O método é a subjugação à vontade do Senhor. A técnica são as vias do Senhor, múltiplas que te dão a noção de livre arbítrio.

Assim, um parafuso pode ser aparafusado por um aparelho eléctrico ou manualmente (diferentes técnicas), mas o método é aparafusar, porque a teoria nos diz que um objecto pontiagudo em rosca sob a aplicação de uma força e movimento circular é capaz de perfurar uma superfície.

Desculpa-me esta pequena derivação mas ela revela-se importante para melhor se compreender a minha preocupação concreta relativa a leitura do teu blog.

Por variadas vezes tive a impressão que as instituições e programas relativos ao acolhimento, negligência e mau trato infantil em Portugal têm uma teoria implícita mas não pensada o que me parece deixar espaço a uma vaga conceptualização em relação ao que são factores de desenvolvimento e saúde mental e, consequentemente, aos métodos orientadores das intervenções. Pressuponho que em certa parte as inúmeras referências bibliográficas que notificas procuram encher este vazio, por exemplo quando dizes algures que "…ajudar as famílias não é dar recursos simplesmente, mas sim capacitar a família para a gestão do mesmos. Não esquecendo que o primeiro recurso que tem de ser bem gerido são as emoções. (...) também nos faz pensar que o divórcio entre o serviço social e a saúde mental, não faz qualquer sentido; talvez somente num país onde ainda se acredita e se defende o assistencialismo e onde a verdadeira saúde mental com cariz comunitário ainda não nasceu."

Efectivamente estou de acordo contigo e a minha proposta seguiria neste sentido, pois estou realmente convencido que uma teoria sobre o desenvolvimento mental na infância e na adolescência não pode estar ausente no projectar e implantar de semelhantes respostas. Acredito que uma clara “visão” das teorias implícitas possa servir para uma clara compreensão do trabalho, nos diferentes níveis institucionais, nos diversos papeis a desempenhar pelos operadores, das possíveis técnicas a utilizar, bem como dos parâmetros de avaliação da eficácia. Esclarecer a teoria e explicitar o método torna-se portanto pedra angular no trabalho com crianças "vítimas" das mais variadas negligências, as famosas crianças em risco.

Como descreve a colega Joana Simões de Almeida, estas crianças "são na sua maioria conhecedoras de experiências traumatizantes, que se revelam posteriormente em comportamentos desviantes e numa ruptura total ou parcial com a família, escola, amigos e sociedade. De entre as vivências traumatizantes vividas por estes menores destacaram-se as situações de abandono por parte da família, negligência e maus tratos sofridos, a delinquência, a precariedade habitacional, a desorganização familiar e os abusos a que são submetidos. Pela história de abandono que conheceram pessoalmente são crianças que têm medo de falar, de olhar nos olhos, de gostar, de confiar. Vítimas de perdas emocionais receiam envolver-se com alguém pois pensam já conhecer o desfecho."

Creio que, devido ao folclore social que o quadro descrito anteriormente geralmente suscita, a cultura dominante em Portugal seja aquela a que chamas assistencialismo, na qual os objectivos fundamentais são a supressão de necessidades básicas, como sedativo do alarido social, e a aplicação do paradigma do amor, como gestão das dinâmicas relacionais.

Não creio, contudo, que estes sejam factores únicos, muito menos essenciais para o desenvolvimento e saúde mental de crianças expostas as situações de risco. Não creio que as crianças sejam passivos receptáculos de input’s educativos, ou do quer que seja.

Receio que os aspectos psicológicos e relacionais sejam bem mais complexos que essa matriz do amor, da moral, da comida, dos vestidos e dos tectos, que funda a generalidade das intervenções.

Põe-se-nos então em evidência a importância de construir um discurso em torno aos modelos genético-evolutivos que explicitam ou implicitamente delimitam as nossas intervenções. Não desejo aqui avançar teorias ou ideias, nem dar respostas, mas abrir uma discussão a essas.

Qual a nossa teoria que explica o desenvolvimento e a saúde mental?
Qual, de consequência, o método que promove o desenvolvimento e a saúde mental?
Em que medida a nossa teoria e o nosso método são explícitos na construção e aplicação dos nossos projectos?
Que técnicas melhor se podem adequar a nossa teoria, método e contexto de intervenção?
Quanto explícitas são estas questões para os nossos colegas, parceiros institucionais e políticas de intervenção?

Tendo isto, talvez fosse interessante pensar sobre o que ainda nos falta caminhar para que possamos responder as estas questões.

A minha proposta é então exposta em forma de demandas, de perguntas, que muito me contentaria se puderem contribuir para o debate no teu blog, para uma reflexão entre os colegas da área, e enfim, que fosse um modesto contributo para o melhoramento do "estado da arte" no que diz respeito ao acolhimento e intervenção na negligência e mau trato infantil em Portugal.

Com um abraço.
Bruno Ferreira
Psicólogo
Mestre em Psicanálise da Relação na Adolescência (SIPer)