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Ainda a Leveza do Peso


Este ano, a primavera, de alguma forma, tarda a chegar. Há qualquer coisa no clima que me faz sentir que estamos no outono. Talvez seja o vento e as folhas que continuam a esvoaçar à porta de casa. Fixo a atenção numa das folhas que desafia a estação do ano e observo o seu movimento. Já quase hipnotizado pela folha dou por mim a torcer pelos seus ensaios de aprendiz de avião. Os ensaios eram bastante interessantes. Primeiro a folha deita-se no chão, faz-se de quase morta, fica pesada e inerte. A folha parece acordar com a chegada da brisa. Fica leve, bem levezinha, arrepia-se pelo chão até encontrar a melhor posição para surfar a onda da brisa. Segura de si, agarra-se de forma determinada à crista da brisa e deixa-se ir, levantando voo. Leve, bem leve, a folha perde todo o peso e voa bem à minha frente, parece um daqueles aviões acrobatas que desafiam a lei da gravidade. Alegremente, a folha desenha no ar caminhos imaginários como se não existissem impossíveis. Com o passar dos segundos a leveza desaparece, os voos restringem-se e o peso parece tomar conta da alma da folha. Torpemente a folha aterra e volta ao seu estado de quase morta, até à próxima brisa.


A folha é talvez uma boa metáfora para o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida. A criança, tal como a folha, torna-se leve e ensaia voos a partir do colo dos pais. No ar aventura-se, salta, corre e dá cambalhotas, consumindo energia até que o peso regresse, fazendo-a correr para o chão seguro dos pais.  
É este diálogo entre a leveza que nos faz levantar voo, sonhar, percorrer novos caminhos e o peso que nos faz aterrar, voltar à segurança do chão sólido que me parece estar particularmente condicionado nas crianças que viveram repetidamente situações traumáticas.

Há infelizmente crianças que crescem assentes em chão trémulo, tipo falha tectónica que, imprevisivelmente, se transforma em terramoto. Ao contrário da nossa visão romântica, que imagina as famílias como territórios de segurança, há muitas famílias que são pouco competentes a oferecerem a estabilidade necessária que permita à criança repousar no seu chão. É natural que quem cresça em cima de uma falha tectónica, pense sempre duas vezes no chão que pisa, o que dá um andar menos natural, em alerta constante sobre o sítio onde coloca os pés.  

Num sismo há sempre dois sítios nos quais estamos seguros, num abrigo antissísmico subterrâneo, bem blindado, sem janelas nem vidros que possam ser quebrados, ou num avião a voar bem alto com autonomia e orientação para chegar a um outro território.

Muitas das crianças com quem tenho trabalhado são verdadeiras sobreviventes sísmicas. São peritas em construir abrigos bem resistentes ou peritas em descolar os pés do chão. Há pouco tempo, uma professora caracterizava um dos seus alunos: “ele é incapaz de pousar os pés no chão, abanando-se durante toda a aula”. “Parece ter os pés sobre brasa”, comentava a professora. Realmente, a professora com a sua enorme capacidade de observação tinha dado uma excelente interpretação do comportamento do João.
Conheci o João, um miúdo franzino de oito anos a frequentar o terceiro ano, quando a mãe o trouxe à minha consulta, após a separação do casal, preocupada com o comportamento irrequieto do filho. Em conversa individual com a mãe, conta-me timidamente o terror dos últimos dois anos: “Sabe, o pai do João sempre foi um indivíduo instável. Explode em pouca água. Nos momentos de maior tensão agride-me verbalmente e mais recentemente chegou a levantar-me a mão, mas como pai é excelente pois nunca tocou com um dedo no João”.

O João ao primeiro contacto é um miúdo afável e calmo. Cumprimenta-me de forma cordial e aceita voluntariamente conversar comigo. Senta-se na cadeira, como “gente crescida”, faz um minuto de silêncio, olha para mim e pergunta-me: “és médico dos malucos?” E sem me dar direito de resposta, continua: “Sabes, o meu pai precisa de vir cá.” Pergunto-lhe porquê. “Sabes, ele não se controla e zanga-se muito, a minha mãe já está farta e já não gosta mais dele. Eu gostava que alguém o pusesse de castigo ou o tratasse. A minha mãe diz que ele não é mau, é doente.” 

Olho para o João e vejo um miúdo com uma linguagem de adulto e cheio de preocupações de gente crescida. À medida que a conversa se desenrola, esqueço-me da queixa de irrequietude e concentro-me na sua história. Conta-me a sua paixão por jogos de computador de guerra e como tem evoluído recentemente. Quando puxo a conversa para o tema da escola, responde prontamente: “Uma seca, só quero fugir de lá, não se faz nada. O pior é quando estão todos em silêncio e parece que vai acontecer alguma coisa.” Peço ao João para me explicar melhor o que sente: “Sabe, quando todos estão a trabalhar e a professora está calada, parece que fico com medo. Acho sempre que alguém vai começar a discutir e que tudo vai acabar mal. Nessa altura, apetece-me fugir da sala e não consigo ficar quieto.
Imagino que o silêncio da sala de aula do João funcione como um prenúncio de sismo, um “estímulo gatilho” que o coloca em alerta e a pensar numa lógica instintiva de luta-fuga. Quando está neste estado de irrequietude e é advertido pela professora, responde-lhe de forma mal-educada, agredindo-a verbalmente, com um rol de palavrões. 

O João é um miúdo que apreendeu que a seguir à bonança vem a tempestade. É por esta razão que o João parece gostar mais do inverno do que da primavera, parece gostar mais dos jogos de guerra do que dos jogos de estratégia ou de paciência. O João aprendeu a sobreviver bem à incerteza sendo mais incerto do que a própria incerteza.

Eu e o João decidimos iniciar uma viagem, por um rolo de papel de cenário gigante. O papel sem fim à vista, era o nosso chão, o desenrolar o nosso tempo, o branco do papel a possibilidade de voarmos os dois naqueles cinquenta minutos de trabalho. Desenhamos aviões, helicópteros, carros de guerra, salva vidas. Desenhamos também emoções, medos, tristezas, alegrias e já no fim do nosso trabalho desenhamos corações. Durante a viajem várias vezes tive receio que a irrequietude do João não desaparece-se, que a viajem ainda criasse mais instabilidade, mas os voos foram progressivamente ficando mais seguros, até que a turbulência desapareceu.     

Regresso às folhas que rodopiam à minha frente e penso que trabalhar com crianças vítimas de situações traumáticas é em grande parte ajudar as famílias a devolverem um chão não trémulo e a criarem contextos nos quais os voos de crescimento sejam seguros.

PVS