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Bairro da Bela Vista em Setúbal II


Recebi recentemente um texto muito interessante publicado no "Le Monde Diplomatic" pelo Padre Constantino Alves, Pároco da Paróquia de Nª Sr.ª da Conceição. Apesar de sair um pouco do tema do blog, achei que valia a pena partilhar convosco uma parte do mesmo texto. Pedi autorização para publicar aqui um excerto do mesmo e agradeço desde já a disponibilidade do Padre Constantino Alves para o mesmo. Espero não o mutilar muito no esforço de o presentar aqui.

TSM

"A MINHA EXPERIÊNCIA BAIRRO DA BELA VISTA

Faz nove anos que na minha função de padre percorro o Bairro da Bela Vista.

Posso dizer que subo e desço constantemente as suas escadarias escuras, entro nas casas das pessoas, falo com grupos de jovens de dia e de noite.

Conheço os recantos mais problemáticos, calco o lixo nas escadas e sinto o odor de dejectos e esgotos a céu aberto.

Desde o início me habituei a ir ao encontro de quem não conhecia, particularmente dos jovens, tomando a iniciativa em cumprimentá-los e apresentar-me. Por vezes, quando passo junto a um grupo pergunto se alguém me conhece e há sempre um jovem que diz: “Conheço”. Peço-lhe que me apresente aos seus colegas enquanto estendo a mão a um e outro e ele diz: “É o padre!”. A partir daí estou aceite. Cumprimento-os de acordo com os seus códigos. Isso me familiariza.

Entrei em casas verdadeiros tugúrios, onde a pobreza extrema era patente. Casas com os colchões no chão, já velhos e rotos, salas sem uma mesa nem cadeiras, janelas sempre fechadas por que estavam podres, doentes acamados há vários anos dormindo em enxergas, sem frigorífico nem fogão (a comida era feita sobre um grelhador de peixe). E apesar disso tudo, nem as assistentes sociais, que já conheciam o caso, faziam mais do que atribuírem o subsídio de reinserção social. Foi preciso mobilizar os nossos recursos para oferecer mesa, cadeiras, frigorífico, televisão, fogão, cobertores e lençóis àquelas duas mulheres desgraçadas, uma com uma paralisia infantil e a mãe com uma forte anemia.

Vi quatro famílias a viverem numa única casa, vinte e duas pessoas ao todo, num ambiente escuro e doentio.

Vi casas negras pela humidade, janelas podres e sem vidros tapadas a papelão há vários anos.

Vi o abandono duma família a quem a casa ardeu com tudo o que lá havia dentro e que esperou sete meses para que a Câmara viesse colocar janelas e portas apesar de promessas sucessivas de que na próxima semana lá iam…

Vi casas onde a água escorria do tecto descendo pelos fios das lâmpadas.

Vi casas sem água há vários meses.

Vi casas com as janelas e portas fechadas com tijolo para ninguém as ocupar e a população sem saber porquê.

Vi postes derrubados com os fios eléctricos pelo chão semanas e semanas.

Vi montureiras e lixo de vários anos nos vãos das escada, e os serviços de limpeza a passarem ao lado,

Ouvi o queixume dos pobres já desesperados de quem tanto espera

Ouvi a raiva incontida de famílias que acusam as autoridades de não lhes prestarem atenção.

Vi grupos de adolescentes dias e dias em pequenos grupos desocupados e presa fácil de outros mais aventureiros.

Vi a droga a ser vendida às claras nos locais sobejamente por todos conhecidos e a preocupação de famílias por não verem acções dissuasoras ou repressivas.

Vi a insegurança estampada no rosto de muitos que à noite não saem das suas casas para participarem em reuniões ou conviverem

Vi as frases agressivas e ofensivas à polícia escritas nas paredes meses e meses a fazerem a sua acção psicológica sem ninguém perceber que isso ia minando as relações com as forças da autoridade.

UMA MASSA ENORME DE CASARIO

São 1259 fogos, cerca de 6500 pessoas, que formam as três unidades urbanas pertencentes à Câmara Municipal e divididas por cores: “Os Azuis”, “Os Rosa” e os “Amarelos”.

Construídos há cerca de trinta anos para serem habitados pelos operários provenientes das várias regiões do país para as diversas empresas de Setúbal: Setenave e várias fábricas do sector automóvel e químico. Todavia logo após o 25 de Abril e dando eco às legítimas aspirações dos “sem habitação” que moravam em barracas e no “quartel de S.Francisco”, retornados de África, além da comunidade cigana, estes bairros foram-lhes destinados. Sem um necessário enquadramento e acompanhamento técnico-social aí foram instaladas estas centenas de famílias.

Por ironia do destino, este bairro da Bela Vista construído nas margens da cidade situa-se hoje quase no centro da cidade, atendendo à construção das unidades educativas do Instituto Politécnico e da anunciada “Nova Setúbal” no Vale da Rosa!

Há questionamentos sobre o tipo de arquitectura:

Segundo os autores deste projecto, muito peculiar, com varandas compridas, pátios interiores, isso favoreceria a convivência entre as famílias.

Outros, pelo contrário, olhando para os resultados, discordam totalmente.

ESTIGMAS DA BELA VISTA

“É da Bela Vista!”, lá são só “pretos e ciganos”, “aquilo é só violência”. São preconceitos destes que criam uma ideia distorcida e redutora da vida nestes bairros.

O bairro que não beneficiou de qualquer pintura desde a sua construção tem uma cor feia e descolorida: pichagens, graffitis de mau gosto, portas sem fechadura, gradeamentos partidos, jardins ao abandono, electricidade lúgubre ou inexistente nos pátios interiores e nas escadarias das habitações.

De fora ninguém passa pelo bairro com interesse a não ser para visitar algum familiar ou amigo. Nada há de atractivo: zonas de lazer e convivência, iniciativas culturais, comércio atraente ou oficinas que dessem resposta a necessidades da vida local. Nem mesmo o lindo Parque Verde da Bela Vista consegue disfarçar esta grande ausência de pólos atractivos.

Taxistas recusam-se a ir ao centro do Bairro durante a noite. Jovens escondem a sua morada, dando a de familiares noutras zonas da cidade, quando respondem a ofertas de emprego.

Nos “Azuis, por exemplo, não há um único parque recreativo para as crianças, apenas um café frequentado quase só por uma etnia.

Entre os moradores, por vezes com dificuldade de entrelaçamento intercultural, tenta-se não criar problemas e conflitos, numa coexistência forçada.

O forte índice de analfabetismo e o abandono precoce da escola, deixam a faixa etária entre os 13 e 16 anos desprotegidos, abandonados a si e à rua, vulneráveis a aliciamentos para a marginalidade.

Uma sociedade de consumo que acena com ilusões e padrões sociais propostos a que muitos destes adolescentes e jovens não podem aceder, cria a tentação do risco e do arranjar dinheiro como puderem e alguns enveredam pelo consumo ou tráfico de droga e roubos.

Sem vislumbrarem perspectivas de vida, surge-lhes um futuro e horizontes sombrios que não os estimulam a ser protagonistas do seu futuro. Os baixos salários e o trabalho precário desmotivam-nos.

Confrontados com a incúria ou desleixo, muitas vezes pelas várias instituições públicas, que sentimentos podem fazer germinar dentro dos adolescentes e jovens?

SINAIS PORTADORAS DE ESPERANÇA

O elevado número de crianças, adolescentes e jovens que frequentam a escola são um sinal de esperança para os tempos futuros. Quase como flores lindas no meio do pântano, muitos jovens delineiam projectos de vida e esforçam-se acumulando estudo e trabalho.

Muitos são os vizinhos que se entreajudam com alimentos e prestação de serviços de vizinhança.

Muitas são as horas passadas junto de doentes ou de famílias a viverem situações de luto. É de notar, por exemplo, na comunidade de origem africana que todos as noites na primeira semana de luto, vizinhos estão junto da família, ora conversando, ora rezando com ela.

Há um sentimento nos jovens muito marcado pela amizade e solidariedade. Embora discordando de comportamentos que condenam, roubos, violência, droga, eles são “seus amigos”. Isso viu-se nos últimos acontecimentos da Bela Vista.

É uma população que responde facilmente a desafios para acções de luta em prol do bairro, portadora de dinamismos transformadores.

Após o atropelamento mortal dum homem quando atravessava uma das avenidas beneficiada há vários meses com um tapete de alcatrão, mas onde não foi colocado qualquer sinal de trânsito e passadeiras, a população organizou-se a apresentou um baixo-assinado de protesto e reclamação de medidas urgentes. Feita a promessa para sua efectivação num curto prazo de poucas semanas foi preciso esperar meio ano.

Como solidariedade para com uma família com ordem de despejo, formada por uma mãe desempregada e duas filhas deficientes, os vizinhos organizaram-se e fizeram outro baixo-assinado dirigido à Câmara.

O DESAFIO ÀS INSTITUIÇÕES

Várias são as instituições com acção ou influência no bairro, destacando-se a Escola, a Cáritas, a Câmara, a ACM, a PSP, a Paróquia, a Associação Cabo-Verdiana, o Club Desportivo “Os Amarelos”, entre outras. Cada uma desenvolvendo a sua actividade própria, encontram dificuldades para acertarem estratégias comuns e formas concertadas de acção.

Sectores como a juventude, a exclusão social, o meio ambiente, a segurança no bairro, a educação, a cultura, a terceira idade, a diversidade étnica e cultural bem necessitam disso.

QUE FUTURO PARA A BELA VISTA?

A Bela Vista é um problema, mas também um desafio e uma oportunidade de se desenvolver uma acção transformadora

Aos moradores, uns já desencantados outros em vias disso urge apresentar sinais rápidos e visíveis.

Já há estudos e diagnósticos que cheguem. Às vezes até parece que alguns, uns atrás dos outros, servem para técnicos ganharem dinheiro e para políticos apresentarem conclusões.

SOLUÇÕES RADICAIS?

UM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO?

Demolir o bairro da Bela Vista à semelhança do que foi feito noutros países e transferir a população para novos bairros construídos com dinheiro da venda dos terrenos? Requalificá-lo com intervenções também no interior das habitações? Demolir partes do Bairro apenas?

Problemas muito difíceis, atendendo às dimensões do bairro e ao facto de várias das habitações pertencerem já aos respectivos moradores.

Não há soluções fáceis. A responsabilidade é de todos, embora em graus diferentes, instituições públicas e cidadãos, pois estão em patamares e responsabilidades diferentes. Mas nenhum por si mesmo, sem um projecto aglutinador poderá ensaiar respostas que erradiquem as causas profundas da exclusão social e da violência.

E assim, há que saber quais e como articular medidas e acções de curto, médio e longo prazo.

Sem o envolvimento da população nada de estável e promissor será feito. E isso implica um plano de proximidade dos poderes responsáveis, um ouvir os problemas e soluções propostas pelos moradores. Com eles iniciar-se ou ampliar-se uma coresponsabilidade organizada, comissões de moradores, de condóminos e dum conselho geral do bairro.

Mas também torna claro: poderes públicos, autarquia (proprietária do bairro) e Governo têm de fazer mais e melhor. Suspenso o Proqual (Plano de requalificação das zonas sub-urbanas) o bairro foi votado ao esquecimento pelo Governo.

A autarquia incapaz de proceder a uma requalificação de fundo reclama do Governo a sua imediata intervenção.

Só o esforço conjugado dos vários poderes públicos, instituições que trabalham no bairro e população poderá aurir uma esperança duradoura.

Começar já!"