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Crianças em perigo: 800 anos de História

Estamos habituados a ver o abuso sexual de crianças como um fenómeno recente. Não me recordo de ler, enquanto estudava na Universidade, casos relacionados com abuso sexual de crianças nos jornais. Nem me recordo de ter abordado esta temática no curso de Psicologia, nem mesmo quando frequentei o ramo de Psicologia Clínica. E no entanto, cada vez mais têm sido noticiados casos de abusos sexuais de crianças nos jornais e na televisão. É de resto muito rara a semana em que não surjam notícias sobre abusos sexuais de crianças, principalmente no Correio da Manhã. De repente parece que existe uma "nova" realidade e que de repente inúmeros casos de abuso sexual começaram a surgir nas primeiras décadas do século XXI.

Podemos assim criar a convicção (falsa) que o abuso sexual de crianças é um fenómeno recente e que as suas causas devem ser procuradas no contexto social actual. No entanto este é um fenómeno com quase 800 de história documentada, pelo menos no caso português. E se no campo da Psicologia esta referência passou despercebida, na historiografia o documento que se segue tem sido muito estudado.

Este documento datada aproximadamente entre 1214 a 1216 relata um caso de abuso sexual de uma criança. O caso vem descrito no que é considerado como o primeiro documento escrito em português a "Notícia de Torto" publicada no Album de Paleografia de João Alves Dias, Oliveira Marques e Teresa Rodrigues e editado pela Editorial Estampa.

Este documento descreve os agravos feitos contra o nobre minhoto Lourenço Fernandes da Cunha que tinha caído em desagravo junto do Rei D. Sancho I. Aproveitando esta circunstância, um grupo de parentes seus aproveitou para lhe roubar frutos, dinheiro e terras, tudo descrito neste documento, presumivelmente dirigido a D. Sancho I. No meio do mesmo documento aparece descrito como um tal de Gonçalo Gonçalves desunro sa fili pechena. Ou seja, no meio dos conflitos familiares a filha pequena de Lourenço Fernandes - presumivelmente pré-púbere como se entenderia neste contexto o que certamente quereria dizer que teria menos de 12 anos - terá sido abusada sexualmente por um dos rivais e parente do seu pai.

Não sabemos mais sobre o que aconteceu a esta filha - nem qual seria - mas mesmo passados 800 anos não podemos deixar de empatizar com o seu sofrimento, vítima de um conflito familiar. Passados 800 anos ainda inúmeras crianças são vítimas de abusos sexuais por ano e, não sendo este um fenómeno novo, talvez tenhamos de repensar as respostas actuais para com estas.

Até que ponto é que no contexto de crianças em perigo faz, ou não sentido, criar respostas específicas para crianças vítimas de abusos sexuais? Até que ponto é que respostas não específicas não constituem maus-tratos na medida em que não se adequam às necessidades específicas destas crianças?

Se calhar ao fim de 800 anos temos de começar a abordar estas questões em profundidade.

TSM