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Instituições de acolhimento do amanhã

Não me parece ser necessário estar recorrentemente a tentar inventar a roda. O problema de padrões de qualidade em instituições de acolhimento de crianças já foi alvo de dedicada atenção por parte de inúmeros técnicos e organizações governamentais nos diversos países ocidentais.

Partindo do princípio que a espécie humana é só uma e que as necessidades básicas de afecto que uma criança necessita para crescer são mais ou menos similares em Portugal e no resto do mundo, não percebo porque é que não começa a existir um esforço de transposição do padrões mínimos de qualidade exigidos às instituições de acolhimento de crianças no estrangeiro para a realidade portuguesa. Podem consultar os standars aqui.

Óbvio que podemos continuar a adiar o processo e a nos lamentarmos com as instituições que temos e com as suspeitas de maus-tratos e abusos institucionais. Podemos também continuar com o discurso politicamente correcto que as instituições de acolhimento de crianças são resquícios da revolução industrial, devendo ser alvo de um saneamento global, promovendo-se a todo custo a adopção ou, quando não possível, o acolhimento familiar numa lógica de tirar as crianças das mãos das más famílias para as pôr nas mãos de boas famílias. Lógica interessante esta de procurar um equilíbrio perfeito que esconde por um passo de mágica o mundo por vezes cruel, onde não está escrito em lado nenhum que uma mãe ou um pai amam todos os dias os seus filhos de forma intensa e gratuita, e que esse amor os protege incondicionalmente.

Acho que precisamos de pôr os pés no chão e olhar com atenção para o nosso mundo e realidade. Desde a Grécia antiga que o abandono de crianças existe, senão vejamos a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, onde o parricídio é antecedido por uma tentativa de filicídio. Ou mais recentemente olhemos para o séc. XIX, em Lisboa, onde um terço das crianças eram abandonadas junto da roda da Misericórdia de Lisboa ou ainda para Paris onde em 1772, de 18.713 crianças nascidas, 7676 foram abandonadas.

O infortúnio do abandono não vai abandonar a nossa sociedade; vai possivelmente transmutar-se. Hoje, como é sabido, não existe um número tão significativo de abandonos de crianças, tanto à nascença como em idades precoces. Contudo, nada nos faz pensar que tenha existido uma profunda alteração na capacidade de amar dos pais dos neonatos. O que na nossa opinião passou a prevalecer foi o abandono silencioso e contínuo perpetuado na forma de negligência, com especial destaque para a negligência emocional. Todas as estatísticas têm revelado um aumento da prevalência desta forma de mau trato senão vejamos...

Ao nível da prevalência, a negligência no universo do mau trato infantil é a forma de mau trato infantil com maior incidência. Em 1997 a negligência constituía 53% dos casos de maus-tratos infantis nos EUA (DHS, 1999 cit. Gershater-Molko, 2003). Tanner (2000), refere que no Reino Unido os casos diagnosticados de negligência superam o somatório de todas as outras formas de mau trato. Em Portugal os dados da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (2002) revelam que 29,1% dos processos de promoção e protecção foram instaurados devido a situações de negligência. A percentagem ligeiramente menor em Portugal deve-se à grande percentagem de processos instaurados devido a absentismo e abandono escolar (26% nos dados referentes a 2001).

Cremos que nos dias de hoje as crianças abandonadas são subtilmente abandonadas e só descobertas através dos seus comportamentos pouco ajustados e por vezes desajustados das normas sociais. Delinquência, perturbações de oposição do comportamento, padrões de irrequietude motora, desmotivação escolar, depressão na segunda infância e adolescência, consumo de substâncias psicoactivas, perturbações emocionais, são só alguns exemplos de sinais de abandono.

São estas crianças subtilmente abandonadas, com vínculos disfuncionais com as famílias biológicas que lhes foram ensinando os caminhos do desamor e da solidão, que necessitam por vezes de acolhimento institucional. São estas crianças tristemente esquecidas que mais precisam de uma instituição que se constitua como espaço terapêutico onde se possa aprender a viver em comunidade ao mesmo tempo que se realiza um árduo trabalho de luto e de reparação de uma infância secretamente não vivida na solidão da habitação.

Se olharmos com atenção para estas crianças, talvez se descubra que o abandono não é dependente do status social dos pais e que crianças verdadeiramente mal tratadas e a necessitarem de um espaço contentor existem em muitas famílias aparentemente estáveis e não beneficiárias de rendimento de inserção social.

As instituições de acolhimento de crianças são realmente necessárias já não para dar de comer aos famintos, roupa aos nus e educação aos indigentes, mas sim para dar amor e limites aos abandonados emocionalmente no seio das suas famílias.

Agora tentem colocar uma criança verdadeiramente perturbada e que só aprendeu a não ser amada numa família de acolhimento ou de adopção e vejam o que acontece …. Podem ter uma grande surpresa. Só se vincula quem ainda acredita no amor e se olha ao espelho com esperança.

PVS